domingo, 25 de maio de 2008

Oceanos de cimento, florestas de concreto


[frederico canuto]

Áreas verdes ou com água são normalmente espaços destinados ao público. Seja em parques, jardins ou até mesmo canteiros centrais de grandes avenidas, o verde é sempre visto como material que testemunha e dá a dimensão pública de determinadas áreas das cidades. No caso de espelhos d’água ou grandes lagos, são mais raros, só aparecendo em grandes parques. Normalmente, os dois são espaços para se olhar, mas não para se aproveitar. Placas ‘não pise na grama’ e fontes guardadas por policiais para impedir que pessoas se banhem nela são os modos como  é possível se relacionar com o verde e água públicos. Destino dos espaços públicos produzidos atualmente, distância entre quem olha e o que olha. Distância que não pode ser medida em metros ou centímetros, mas em sensibilidade corpórea.    
Não se pode pisar na grama, nadar no lago ou refrescar os pés nos espelhos d’água. O contato com a água é sempre da distância ou da extrema e aterrorizante proximidade. Chuva que derruba barracos e muros de arrimo pelas áreas mais pobres, enche as bocas de lobo, trazendo alagamentos das vias públicas e enchentes. Para as hidrelétricas, quando é demais, tem de ser liberada, ou de menos, motivo de pânico pela possível falta de energia, o apagão. Quanto as áreas verdes, bananeiras plantadas nos quintais das casas para ‘segurar terra’, enfraquecem-na, tornando-a passível de deslizamentos. Paradoxo: quanto menos grama se tem, e mais cimento há, mais uso é feito dessa superfície. Nela movimenta-se de carro ou ônibus, transportando gente e produtos. Porém, menos grama, mais enchente, pois menos água é absorvida pela terra. Mais grama, espaço ocioso, vazio.   
Metropolis, revista americana especializada em arquitetura, design e cultura, tem como matéria de capa The New American Landscape, sobre a construção de jardins gramados nas grandes cidades norte-americanas. Na revista são exploradas as possibilidades geradas pela associação entre jardins no terraço de grandes edifícios e ‘especialização em arquitetura, design e cultura’. Vamos por partes, então.    Se é função da arquitetura construir espaços para a ocupação humana, isso significa que espaço só pode ser pensado como tal se ele é vivido, senão é quase como uma escultura a ser olhada e não usada pelo próprio morador ou usuário. Assim, a arquitetura só pode ser arquitetura quando ela ultrapassa seu valor fotogênico e se realiza como forma vivenciada pela ação humana, cristalizando-se na imaginação, tornando-se simbólica, imagem, no e pelo espaço da cidade. A arquitetura, depois de construída, se é capaz de construir uma estreita relação com as pessoas que a usam, independente de ser afetiva ou não, transforma-se então em um dado cultural. Ela é objeto dado a um uso e produtora de uma cultura, um modo de viver específico. Dessa maneira, ela e cultura se aproximam e interseccionam justamente porque são interdependentes, produzindo e sendo produto de cada uma.    
Por outro lado, se um objeto é capaz de produzir um acontecimento espacial, um instrumento infra-estrutural para a ação, ele é um material arquitetônico, produtor de uma cultura espacializada no mundo. Dessa maneira, expande-se a arquitetura em direção ao design de objetos, gráfico, entre outros. Uma roupa, um instrumento de trabalho como o computador, placas de trânsito, outdoors, são produtos arquitetônicos, pois dizem respeito a uma prática espacial, uma vivência real ou virtual, em salas de cat da Internet.    
Pensando então que arquitetura,cultura e design são categorias espaciais, pois se espacializam, essa é a especialidade a que a revista se refere. Possibilidades múltiplas de construção de espaços, usando de qualquer um dos três campos ou suas convergências, junções.    
Que jardins são esses, tema da revista como construção de uma ‘nova paisagem americana’? Nos Estados Unidos, especialmente em Chicago e New York, e Alemanha o governo tem dado incentivos como desconto em impostos, possibilidades de negociação dentro da legislação urbana e vantagens para empresas e projetos que usam a coberturas de suas edificações como espaços para instalação de coberturas vegetais. Nessa quinta fachada [fachadas posterior, frontal, direita e esquerda são as quatro conhecidas], são instaladas grandes áreas verdes a fim de se diminuir a temperatura das cidades, cada vez maiores devido ao efeito estufa e aquecimento globais, além dos próprios custos energéticos. Vários edifícios estão aderindo a tal projeto, esverdeando suas coberturas, em troca de vantagens. A arquitetura é a capacidade, aqui, de criar mecanismos de facilitação para o uso do espaço pelos habitantes da cidade. Portanto, usa do mecanismo legislativo para construir novos modos culturais espacializados.    
Mas como pensar tal intervenção arquitetônica no Brasil, onde a maior taxa de construção civil se concentra na chamada autoconstrução, pessoas que constróem suas próprias casas, e não sob o poder de grandes empresas da construção civil? Como é possível dar ganhos em taxas de ocupação ou descontos de impostos, por exemplo, se há um agravante com relação a legislação, que poderia sustentar tais medidas: no caso da maioria das cidades brasileiras, elas não tem sequer plano diretores ainda, legislação urbana mais conhecida; e em grande parte das cidades que possuem planos diretores, as áreas periféricas são as que escapam de qualquer controle, inclusive legal, por parte do Estado?    
Porém, pensando a cultura não como um problema, mas catalisador para uma solução: se a produção espacial é autônoma, com pessoas construindo e usando seus espaços à revelia de legislações, a arquitetura tem de inserir-se nesse circuito de produção. A autonomia dos habitantes da cidade como geradora de ganhos para a mesma. Reconsiderando-se pelo avesso: não como se fazem as casas, mas como as pessoas usam as casas, que materiais arquitetônicos elas utilizam para viver. Como se constróem placas de grama, ou como se tem acesso a ela? Quanto custa o metro quadrado de grama? Como facilitar o acesso a grama para a cobertura das edificações por parte das pessoas que moram em casas autoconstruídas? Como agenciar a possibilidade de uso de grama nas coberturas de suas casas? O que se pode fazer com uma cobertura gramada? Jogar futebol, vôlei, peteca? E se ela fosse molhada? Como fazer as pessoas usarem piscinas na cobertura de suas casas? Qual o preço de uma piscina? De plástico? De metal? De fibra? Onde comprar grama? Onde comprar tal piscina? Nesse caso, pensar ao avesso é como objetos cotidianos, produtos de design, são responsáveis por ações no espaço como tomar sol, nadar numa piscina num dia quente de verão, construindo arquitetura e edificando culturas.   

A foto é a laje de uma casa sendo usada para nadar num dia quente de verão. Coberturas molhadas para o churrasco de final de semana. Um oceano cimentado.

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